quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Os filhos de Papai Noel*

“Não existe época do ano mais agradável e produtiva, para o mundo da indústria e do comércio, que o Natal e as semanas que o antecedem. (...) Entre os homens de negócios, as pesadas disputas de interesses se aplacam e dão lugar a uma nova competição: quem oferece de modo mais gracioso o presente mais distinto e original.
(...)
O chefe do Departamento Pessoal entrou no depósito com uma barba postiça numa das mãos: ‘Ei, você!’, disse a Marcovaldo. ‘Experimente um pouquinho como fica com esta barba. Perfeito! O natal é você. Venha aqui em cima, rápido. Vai ganhar um prêmio especial se fizer cinqüenta entregas a domicílio por dia.’
(...)
A recompensa às vezes era considerável e Marcovaldo poderia se dar por satisfeito, mas algo lhe faltava. Todas as vezes, antes de tocar a campainha, seguido por Michelino [um de seus filhos], saboreava antecipadamente a admiração de quem, ao abrir, encontrasse pela frente Papai Noel em pessoa; esperava saudações, curiosidade, gratidão. E todas as vezes era sempre recebido como o carteiro que leva o jornal todos os dias.
Tocou a campainha de uma casa luxuosa. Uma governanta abriu.
- Ah, mais um pacote, da parte de quem?
- A SBAV [nome da empresa em que Marcovaldo trabalha] deseja...
- Bom, traga aqui. – E procedeu Papai Noel por um corredor cheio de tapeçarias, tapetes e vasos de porcelana. Michelino, de olhos arregalados, ia atrás do pai.
(...)
Os brinquedos, espalhados em cima de um grande tapete, eram tantos como numa loja de brinquedos, sobretudo complicados engenhos eletrônicos e modelos de astronaves. Sobre o tapete, num canto livre, encontrava-se um menino deitado, de bruços, aparentando nove anos, com uma expressão amuada e entediada. Folheava um livro ilustrado, como se tudo aquilo que havia ao redor não lhe dissesse respeito.
- Gianfranco, vamos, Gianfranco – disse a governanta -, viu que Papai Noel está de volta com outro presente?
- Trezentos e doze – suspirou o menino sem erguer os olhos do livro. – Coloque ali.
- É o tricentésimo décimo segundo presente que chega – disse a governanta – Gianfranco é tão esperto que conta todos, sua grande paixão é contar.
Na ponta dos pés, Marcovaldo e Michelino saíram da casa.
- Papai, aquele é um menino pobre? – perguntou Michelino.
Marcovaldo estava ocupado realocando em ordem os pacotes e não respondeu logo. Mas, depois de um instante, apressou-se em protestar:
- Pobre? Que está dizendo? Sabe quem é o pai dele? É o presidente da União para o Incremento das Vendas Natalinas! P comendador... – Interrompeu-se, pois não estava vendo Michelino. – Michelino, Michelino! Onde você foi parar? – Desaparecera.
(...)
Ao chegar [em casa], encontrou Michelino junto com os irmãos, tranqüilo, tranqüilo.
- Me conta, onde se meteu?
- Em casa, pegando os presentes... Os presentes para aquele menino pobre...
- Hein? Quem?
- Aquele que estava tão triste... aquele da vila com a árvore de natal...
(...)
- Imaginem! – disse Marcovaldo. – Tinha mesmo necessidade dos presentes de vocês para ficar contente!
- Sim, sim, dos nossos... Correu logo para arrancar o papel e ver o que era...
- E o que era?
- O primeiro era um martelo: aquele martelo grande, redondo, de madeira...
- E ele?
- Pulava de alegria! Pegou nele e começou a usá-lo!
- Como?
- Quebrou todos os brinquedos! E todos os cristais! Depois pegou o segundo presente...
- O que era?
- Um estilingue. Precisava ver que felicidade... Quebrou todas as bolas de vidro da árvore de natal. Depois passou para os lustres...
- Basta, basta, não quero ouvir mais nada! E... o terceiro presente?
- Não tínhamos mais nada para oferecer, e então embrulhamos uma caixa de fósforos de cozinha com papel prateado. Foi o presente que o deixou mais contente. Dizia: ‘Fósforos, não me deixam nem chegar perto deles!’. Começou a riscá-los, e...
- E...?
- ...pôs fogo em tudo!
Marcovaldo pôs as mãos nos cabelos.
- Estou arruinado!
No dia seguinte, apresentando-se no trabalho, sentia a tempestade que estava se formando. Vestiu-se de Papai Noel num piscar de olhos, carregou para a motinho os pacotes a serem entregues, já admirado de que ainda ninguém lhe tivesse dito nada, quando viu caminhando ao seu encontro três chefes, o de Relações Públicas, o de Marketing e o do Departamento Comercial.
- Alto! – ordenaram-lhe – descarregue tudo, imediatamente!
Descobriram’, pensou Marcovaldo, e já se via demitido.
- Rápido! É preciso substituir os pacotes! – disseram os chefes de departamento. A União para o Incremento das Vendas Natalinas criou uma campanha para o lançamento do Presente Destrutivo!
- Assim, de repente... – comentou um deles. – Poderiam ter pensando nisso antes...
- Foi uma descoberta inesperada do presidente – explicou um outro. – Parece que seu filho recebeu artigos-brindes moderníssimos, acho que japoneses, e pela primeira vez o menino se divertiu para valer...
- O que mais interessa – acrescentou um terceiro – é que o Presente Destrutivo serve para destruir artigos de todo gênero: era isso o que faltava para acelerar o timo do consumo e reativar o mercado... Tudo num tempo muito curto e ao alcance de uma criança... O presidente da União viu abrir-se um novo horizonte, está no sétimo céu do entusiasmo...”

*Recortes do conto do mestre Ítalo Calvino em seu livro “Marcovaldo ou As estações na cidade”, que narra a relação de um operário com a falta de natureza do ambiente urbano e o consumismo, uma crítica realista, bem humorada, e com a leveza que o autor nunca se deixou perder.

Criticar o consumismo natalino pode ter virado clichê, mas mesmo depois de tantas décadas em que essa mania persiste, ainda é raro encontrar um texto com uma perspectiva intrigante sobre o assunto. Por isso, valeu a pena digitar essa parte do conto. Também vale a pena ler o livro todo, se vale!

Aliás, se for consumir no natal, que tal, ao menos, consumir cultura?

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