sexta-feira, 7 de maio de 2010

Sustentação

Quando trombei com Miguel no corredor do escritório, sequer tinha visto que ele estava lá, à porta de sua sala – se o tivesse visto, não teria esbarrado nele, obviamente. Mas a recíproca, evidentemente, não era verdadeira. Seus olhos castanho-escuros fixavam-se no meu rosto com tal imobilidade, que era impossível dizer se fitava um detalhe hipnoticamente ou se, na verdade, estava absorto em imagens mentais e não enxergava um palmo à frente do nariz.

Impressionada, tentei ignorar aquele olhar febril para não causar maior constrangimento e estiquei-lhe as folhas do projeto com uma mão:

- Oi, Miguel! Aqui está uma ideia de redação da proposta. Dá uma olhada e pode sugerir as mudanças que quiser! – disse, numa tentativa de soar simpática e abortar o alongamento da conversa, antes que ela começasse.

Para meu alívio, a resposta veio mais calma do que esperava, natural e confiante, corriqueira:

- Ah, brigado, Marli! Que bom que você já começou a escrever! Vou dar uma lida e depois te falo! – disse, segurando os papeis com as duas mãos bem firmes.

Oras pra onde teria ido aquele nervosismo inicial, supostamente, desencadeado pela minha presença? Não entendi, mas me aliviei por fugir da ameaça de entrar numa onda de situações desconfortáveis.

Nunca vi fuga mais breve. A fala de Miguel parecia estar intimamente conectada às suas mãos, era o que as sustentava. No exato segundo em que concluiu suas frases, uma tremedeira frenética tomou conta de suas mãos e de seu corpo inteiro. Parecia até ter embaralhado seus pensamentos, porque quando esbocei um sinal de despedida, ele sequer compreendeu.

Na verdade, acho que não foi a tremedeira que cessou sua fala, mas a fala que conseguiu, momentaneamente, driblar aquela terrível inquietude. Afinal, frases formuladas são carregadas de palavras, que são nada além de conceitos, recortes de mundo através de um ponto de vista. Apenas isso, e têm o incrível poder de organizar uma ínfima parte da infinitude de possibilidades de cada momento.

Assim, ao proferir seu breve discurso, Miguel encontrou, mais que segurança, um sentido para nortear seu pobre coração e mente confusos. Mas essa sensação de segurança instantaneamente derreteu com o fim do som das palavras. Elas ganham muito mais significado e valor ao se tornarem públicas, porque recebem a validação de seus ouvintes, confirmando que realmente existem e são inteligíveis – quem nunca disse algo em voz alta, mesmo sozinho, só pra ver se acreditava no que estava pensando, se aquilo fazia sentido no mundo real?

Frequentemente somos atores perante nós mesmos quando falamos, porque concretizamos – ou tentamos concretizar – a imagem que queremos passar ao mundo exterior.

Talvez eu mesma tenha atuado quando fingi não reparar no Miguel ao passar pelo corredor e trombar com ele. Mas perdi a capacidade de encenação frente ao seu nervosismo tremelicante. Sucumbi à sádica curiosidade humana de observar o outro numa situação adversa. Devo tê-lo fuzilado com os olhos estupefatos, porque a tremedeira se intensificou ainda mais.

Então, numa súbita retomada de consciência, segurei a ponta do maço de folhas, que pararam de tremer, encarei seu rosto aflito e disse:

- Pode ler com calma! E quando terminar, fala comigo ou com a Vera, porque hoje tenho que ir embora mais cedo.

- Pode deixar! – respondeu. Sem mover um fio de cabelo.

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