sexta-feira, 31 de agosto de 2012

escorpião


“o escorpião de que eu fugia no porão lá de casa 
com medo de ser mordido por ele, 
era paradoxalmente um bicho que eu trazia dentro de mim, 
por ter nascido dentro desse signo.”
Carlos Drummond de Andrade 
em entrevista a Maria Lúcia do Pazo 
(Folha de São Paulo, 08/07/2012)





_______________________________________escorpião
   
    

_______________escorpião que me habita
_______________animal que sou e não conheço
_______________apenas reconheço o vislumbre das faces
_______________na pele, o deslize macio de navalha
_______________na boca, o caldo ardido
_______________na mente, o toque arisco
_______________me consome a ânsia de consumir
_______________pele, músculos, vícios enrijecidos
_______________escorpião que nos ultrapassa
_______________não há desejo que resista
_______________um sem fim de coitos nunca basta
_______________é vontade primordial insubordinada
_______________devorar-te a mim mesma
_______________escorpião que me sustenta a alma
_______________alimenta e corrói as veias
_______________a solavancos e sobressaltos
_______________mantém o fluxo de energia
_______________veneno que me dá vida
_______________e um dia, ainda me mata




_________________________________________________________________Itanhaém – SP
_________________________________________________________________9 de julho de 2012

_____________________________________________________Bruna Escaleira_____________



quinta-feira, 21 de junho de 2012

cidadelinha, cidadeletra



a madrugada é  o bastidor do dia
revela as artérias da cidade cinza
sem a cobertura colorida da multidão,
fica ainda mais difícil acreditar
que pelas veias de concreto corre sangue
- além dos os atropelamentos

a neblina gélida e fofa abaixa o horizonte
e leva um cima intimista às avenidas
tudo acontece fora de lugar
qualquer sinal de vida exterior aos carros
vira personagem de drama surrealista

um homem de terno e descalço caminha sobre a ponte, no meio da pista
pula, agita-se, tentando convencer algum veículo sem rosto a parar
não fiquei pra ver se conseguiria
a distância e o medo abortam as relações urbanas e seus causos
- a pressa indiscutível e inútil

teria sido roubado e largado sem lenço ou documento?
teria tido o juízo furtado pelo caos urbano
e cometido o desacato de unir pele a asfalto?
seria um artista em performance incompreendido?
pegadinha de televisão?
novo golpe de bandidos?

ou nada.
como se sente, vulnerável na imensidão em tons de cimento
a frieza do concreto absorve a vida dos neurônios
mal se consegue pensar, situar-se
hesitando-se a esmo
num misto de deriva e repulsa

se tivesse seguido esta última, a reação,
dissiparia a cortina de poluição que cega olhos e batimentos cardíacos
e chegaria a uma ilha viva
onde homens interferem no concreto inabalável

são trabalhadores viários da escuridão
saem apenas quando a cidade dorme
para regular suas linhas
como escritores ou revisores de texto

apagam buracos, reescrevem rascunhos de sinalização
com britadeiras, retocam caminhos antigos
trazem surpresas,
vingam-se nos retornos inalcançáveis
e zelam garantindo passagens seguras

a cidade é um enorme projeto gráfico
que deve ser coletivo para dar certo
cada vírgula
(linha branca ou amarela, pontilhada ou contínua, mureta, placa)
deve ser discutível

a cidade não é à priori
não foi sempre assim
não nasceu,
foi nascida
cada alicerce é uma construção
o concreto que mata a vida não existe sem ela
é preciso uma mão para despejá-lo
- mão de carne, ainda que atrás de outra metálica

eu vi o pincel que pinta as ruas
eu vi um homem, sozinho, grampear as quebras de página de uma avenida
- com aquelas “tartarugas” amarelas

eu vi a cidade sendo escrita
e depois daquela madrugada,
quis mudar suas palavras

...

cidadezona
cidadezinha

cidadelona
cidadelinha

cidadeletra
cidademinha

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terça-feira, 10 de abril de 2012

chá de chuva


faço um chá com a água da chuva
e deixo que ela destile meus caroços
sonhos remoídos, dúvidas inacabadas
que se aglomeram no pescoço
e impedem o correr do ar

deixo que o vapor os dissipe
e que sua própria fumaça me acalante
misturada ao sabor da infância:
hortelã

uma xícara de chá é como colo de avó
tem qualquer coisa de refúgio e certeza
que combina perfeitamente com a instabilidade da chuva
e o mantra tranquilizante dos gotejos

lá fora, as gotas são tormenta e resfriado
aqui dentro, trégua e aconchego
dessa duplicidade vem seu dom de destilar problemas
substância pesada e grudenta
contra a chuva leve e escorregadia

chá vai chovendo
chuva vai fervendo
e os caroços amolecendo
derretem-se e misturam-se
escorrem pelas veias
e evaporam aos poros todos
suadouro refrescante de hortelã:
cuca fresca!